22 de out. de 2013

‘Ensino religioso aumenta intolerância nas escolas públicas’, afirma pesquisadora

‘Ensino religioso aumenta intolerância nas escolas públicas’, afirma pesquisadora


Encantada com o aprendizado e as crianças nos terreiros, a autora de ‘Educação nos terreiros – e como a escola se relaciona com as crianças do candomblé’, publicado pela Pallas em 2012, Stela Guedes Caputo, pesquisou a fundo a relação da religião afro-brasileira com a educação pública no Rio de Janeiro.

Defensora da extinção do ensino religioso obrigatório, ela evidencia em suas pesquisas como essas crianças sofrem com a discriminação nos colégios. Segundo ela, o cenário tende a piorar, com o conservadorismo se enraizando cada vez mais no conteúdo das disciplinas e a pauta do Vaticano sendo incorporada.

Na entrevista ela revela como são estabelecidos os critérios da formação dos professores, os conteúdos dos materiais didáticos, as verbas destinadas para esse objetivo e suas perspectivas, além de denunciar como o modelo idealizado pelo governo está desconectado à prática nas salas de aula. Propõe, ainda, uma PEC para retirar a obrigatoriedade do ensino religioso da Constituição.

Você pode falar um pouco sobre o que originou a pesquisa do seu livro?

Eu era jornalista, trabalhava no jornal ‘O Dia’, e em 1992 recebi uma pauta do editor para fazer um mapeamento dos terreiros na Baixada Fluminense. Quando cheguei ao terreiro de Mãe Palmira, o Ile Omo Oya Legi, em Mesquita, vi o Ricardo Neri, um menino ogan, tocando atabaque. O real sempre surpreende e dá uma pauta melhor, não sabia que as crianças podiam ocupar cargo na hierarquia do culto. Publicamos uma matéria bem interessante sobre como as crianças aprendem no terreiro, inclusive o yoruba, e respeitam a hierarquia e a ancestralidade.

Mas com os limites de uma página de jornal, e também porque nos jornais hoje temos uma pauta e amanhã outra. Continuei estudando como as crianças aprendem no terreiro e fui fazer mestrado e doutorado na PUC e pós doutorado na UERJ, tudo em educação. Voltei ao terreiro, onde permaneci por 20 anos, e também escolhi o terreiro da mãe Beata, em Miguel Couto, e o de Égun, que é outro tipo de culto no candomblé, em Belford Roxo.

Só que as crianças começaram a dizer que havia problemas na escola. Em 1992 eu já havia escutado do Ricardo, então com 4 anos, que uma professora o chamou de filho do diabo. Achei estranho, e quando voltei em 1996 novas crianças diziam o mesmo. Já tinha havido também uma repercussão negativa, porque o Bispo Macedo comprou as fotos que a gente fez na Agência O Dia e publicou o livro ‘Orixás, caboclos e guias – deuses ou demônios’?

Ele colocava de forma pejorativa as crianças. Então estabeleci dois caminhos na pesquisa: saber como as crianças aprendem, que é uma coisa inesgotável, e como são discriminadas na escola. Fiquei na escola e no terreiro, entrevistei professores de Ensino Religioso (ER) e de outras disciplinas para verificar qual era a relação. Resultou na minha tese de doutorado concluída em 2005, e esperei mais 7 anos para publicar o livro. Entendi melhor o candomblé e vi que essas crianças não mudaram de opinião. Elas tiveram filhos e constatei que na nova geração, infelizmente, é pior. As crianças estabeleciam táticas, diziam que eram católicas na escola para não sofrer. Elas têm orgulho da fé, religião, hierarquia, comunidade de terreiro, se sentem muito bem, mas do portão para dentro. Isso é o cruel de uma prática que eu chamo de discriminação religiosa e racial, porque a maioria é negra.



Você pode descrever melhor essa associação entre religião e raça?

O que aqui conhecemos por candomblé chega com os negros escravizados. Segundo Ellis Cashmore, antes do fim do tráfico de escravos, em meados do século XIX, cerca de 12 a 15 milhões de africanos foram transportados para América do Norte, Central e Sul. Edgar Robert Conrad estima que mais de 5 milhões foram trazidos ao Brasil entre 1525 e 1851. A classe dominante brasileira queria “apenas” o corpo escravizado para erguer este país sob seus interesses, mas não sabia o que vinha dentro desse corpo. A África não é homogênea econômica, política ou culturalmente, tampouco na religião.

Então o que nos marca são esses grupos que vão fazer nascer no Brasil o Xangô de Pernambuco, o tambor de Mina do Maranhão, o batuque no Rio Grande do Sul, o candomblé Angola, Jeje ou Ketu, na Bahia, sudeste e outras regiões do Brasil. Dentro do corpo vieram, portanto, os inkices, voduns e Orixás. Esse sagrado, nenhuma chibata arrancou e nem a morte é capaz de arrancar.

Sabemos que a raça não é senão um conceito político que só pode desaparecer enquanto categoria de análise social quando o racismo também desaparecer. O racismo é um sistema completo, integral. Quando você odeia alguém por sua raça você o odeia inteiramente, inclusive seu modo de crer e significar o mundo. E não podemos mais dizer que o candomblé é uma religião simbolicamente só de negros, embora majoritariamente seja. Na análise dos insultos raciais estudados por Antônio Sérgio Guimarães ele localizou insultos comuns como “negro macumbeiro”. A maioria das crianças de minha pesquisa ao longo desses mais de 20 anos é negra, e todas relatam já terem sofrido esse mesmo tipo de insulto.

Qual o cenário aqui no Rio de candomblecistas, e quais as leis vigentes em relação ao ensino religioso na rede pública?

O último Censo do IBGE, em 2010, aponta que há 50.967 candomblecistas no Rio, enquanto na umbanda chega a 89.626. Os neopentecostais têm crescido muito, inclusive convertendo muitos membros de terreiro aqui e em África. Mas qualquer número sobre essas religiões nunca será preciso: historicamente perseguidos, não são religiões de conversão, e são de awô (segredo). É certo, no entanto, que o número de candomblecistas tem caído. Por outro lado muitas campanhas pelas ações afirmativas, incluindo a maior visibilidade de candomblecistas, também crescem e acho que poderemos ter um novo desenho numérico de aproximação.

Em relação às leis, na Constituição de 1988 a obrigatoriedade do ensino religioso permanece. Cria uma esquizofrenia, porque ela continua dizendo que o Estado é laico e, portanto, não temos uma religião oficial. Os estados têm autonomia, então no Rio de Janeiro, em 2000, o governador Garotinho sanciona a lei do deputado católico Carlos Dias e estabelece o ensino confessional.

Em 2004, Rosinha faz o concurso e contrata 500 professores de ER que se somam aos 364 professores na rede estadual que, desviados de suas disciplinas, já lecionavam religião. Isso se torna mais grave quando o Sindicato dos Profissionais de Educação do Rio informa que a demanda de professores é da ordem de 12 mil professores.

Ser confessional significa que cada professor confessa sua fé, e fará concurso para ela. Assim temos 68,2% católicos, 26,31% evangélicos, 5,26% de outras religiões. A Coordenação de Ensino Religioso (CER), da Secretaria Estadual de Educação, diz que em 2003 realizou pesquisa e constatou esse percentual nas religiões dos alunos.

É uma pesquisa furada porque não leva em conta que historicamente candomblecistas não revelam sua fé por conta da perseguição religiosa, pois não é de conversão e se trata de uma religião de awô (segredos), o que faz o silêncio uma de suas práticas. Mas silêncio não deve ser confundido com silenciamento. O ER é uma violência contra religiões não hegemônicas, contra os ateus e, sobretudo, contra alunos e alunas do candomblé e umbanda, os mais perseguidos.

Como isso acontece na prática?

A nossa escolarização pública é marcada pelos objetivos de catequese desde que os jesuítas chegaram em 1549. No ano seguinte constroem uma capela e um colégio, achavam que deviam estar em todos os espaços não só para fazer novos católicos, mas, principalmente, combater os não católicos. Com a reforma pombalina e a expulsão dos jesuítas em 1759 temos uma primeira tentativa de separar religião da educação, que só será realizada oficialmente com a República na Constituição de 1891. Mas de lá para cá esses setores conservadores da igreja católica impuseram derrotas aos setores laicos.

Na Constituição de 34 a religião passa a ser matéria com oferta obrigatória no currículo, na de 37 há um pequeno recuo e passa a ser uma possibilidade, no texto de 46 volta a ser obrigatória mas facultativa e, em 67, já na Ditadura, permanece obrigatória, mas sem ônus para os cofres públicos.

Hoje é ainda pior, já que só no Rio, tanto no Estado como no município, os gastos com ER são de cerca de R$ 16 milhões anuais. Não satisfeita, a Igreja católica pressiona para a assinatura da Concordata Brasil-Vaticano em novembro de 2008, quando Lula assina o acordo com Bento XVI. O artigo 11 da atual constituição é um absurdo, porque além de destruir qualquer vestígio de laicidade assegura o privilégio da igreja católica e a coloca como referência.
Se perguntar para a Coordenação de Ensino Religioso (dirigida por católicos desde sempre) ela vai dizer que esta disciplina não é proselitista, ou seja, não é para converter, é apenas para “passar valores”. Muita gente se engana com isso (ou é cínica mesmo). Tão logo a Concordata foi assinada, o jornal virtual da comunidade “Canção Nova”, ligada ao movimento dos católicos carismáticos, detalhou no seu artigo 11 que a educação religiosa por natureza é sempre confessional. Os iludidos (ou cínicos) precisam estar nas escolas públicas para ver o que acontece: alunos ungidos com óleo bento por serem de outra religião, humilhados por serem ateus, exorcizados por serem candomblecistas ou homossexuais.

Como a disciplina é organizada e como os professores preparam seu conteúdo?

Nas escolas do estado a proposta é que no futuro os estudantes sejam separados por turmas e assistam a aula de seu credo. Já exclui o argumento de que o ER ajude a diminuir a intolerância e amplie os conhecimentos de todas as religiões. Na prática, todos os credos estão em uma única aula desses tais “valores”. Desde 2004 eu entrevistava os professores sobre que material usavam, e a maioria respondia que selecionava da bíblia o que fosse comum para católicos e evangélicos. Como isso é possível? A bíblia é um valor para quem?

Além disso, há muito texto do Padre Zezinho, Marcelo Rossi e materiais da Campanha da Fraternidade. Em 2007, a Cúria Diocesana do Rio lança a coleção didática de livros católicos. São 4 volumes de muito retrocesso não apenas porque ofende o candomblé, mas porque traz uma visão conservadora de família e mulher, e é racista porque mantém negros em papéis subalternos.

Trabalhamos há anos para que se avance na direção de uma educação multicultural crítica, antirracista e libertária e vem a Igreja com sua pauta obscurantista em rico papel couché, ilustrada pelo Ziraldo, na contra mão reacionária. E por que digo que ofende o candomblé? Porque na página 56 de um dos volumes, chamado “A Igreja de Cristo”, lemos: “A Umbanda não faz uso de sacrifícios de animais em seus rituais, porque respeita a vida e a natureza”.

Além de um equívoco de informação porque dependendo da linha muitas casas de umbanda fazem a oferenda de animais, trata-se de uma agressão explícita ao candomblé para quem o ritual da oferenda é estruturante. Há uns 10 anos venho discutindo, conversando, fazendo palestras sobre isso e, ao conversar com grupos de professores do município estes diziam que não era problema deles pois nas suas escolas não havia a disciplina. Eu já alertava, e em 2011 o prefeito Eduardo Paes cria por decreto a disciplina. Fez concurso e existem cerca de 400 professores de ER no município que, a exemplo do estado, também é confessional.

E como acontece a formação desses professores?

Para o concurso se exige licenciatura e credenciamento pela autoridade religiosa, o que ofende ainda mais a laicidade. Ela fiscaliza se o professor vai abandonar ou não a religião, e pode descredenciá-lo caso mude. Desde 1996 acontecem os Fóruns de Professores de Ensino Religioso do Rio, ou seja, desde antes da aprovação do confessional e do concurso. São encontros anuais que a Secretaria de Educação organiza e realiza só com esta área para fortalecer e padronizar o que chamo de missionarismo nas escolas públicas.

No material distribuído no Fórum de 2010, por exemplo, constava: “apresentar a Campanha da Fraternidade 2011, numa postura de parceria com a Igreja católica”. Outra atividade agendava a celebração do “Dia de Ação de Graças nas escolas públicas”.

Veja a definição do dicionário Houaiss para o termo laico: “Laico é aquele que não pertence ao clero nem a uma ordem religiosa. Aquele que é hostil à influência da Igreja e do clero sobre a vida intelectual e moral e sobre as instituições e os serviços públicos”. Por mais que tentem distorcer ou achar outro significado que sirva aos interesses obscurantistas, organizar a Campanha da Fraternidade, dentre outros, não cabe em absolutamente nenhuma flexibilização que se faça desse conceito.

Os alunos frequentam as aulas de Ensino Religioso?

A Constituição diz que a oferta da disciplina é obrigatória e a frequência facultativa, mas a frequência é praticamente de 100% por vários motivos. Muitas escolas sequer avisam que os alunos podem não frequentar essas aulas, e embora a Lei de Diretrizes e Bases diga que a escola deva oferecer uma atividade alternativa para os que não desejarem assistir às aulas de ER, isso nunca acontece. Muitos pais também desejam o ER na esperança de resolver problemas de indisciplina ou agressividade dos filhos e filhas, o que também é desejado por professores que já lidam cotidianamente com esse problema na escola. Eu não quero ser pessimista, mas acho que tudo ainda pode piorar.

No Fórum de 2010 entrevistei 20 dos 100 professores que compareceram, e todos afirmaram que desejam que a frequência dos alunos seja obrigatória. Desejam que sua disciplina seja plena como as demais, e isso também vale para avaliação. ER confere uma nota, mas não reprova. Todos também disseram desejar que o ER reprove. Todo mundo sabe que a avaliação é participação, presença e uma prova ou trabalho final. Como um aluno de candomblé vai participar de uma aula que fala de catolicismo? Ele não se reconhece, recebe um livro didático dizendo que ele não respeita a vida e a natureza, apesar de o candomblé ser uma religião altamente ecológica. E também tendemos a avaliar mais positivamente quanto mais o avaliado se parecer conosco.

Em qualquer área da educação há que se ter muito cuidado com isso para não se cometer injustiças nem discriminações. Como fazer uma avaliação de ER se a perspectiva desse professor é a conversão? Se não revertermos o processo que avança, um dia o ER vai conferir uma nota que reprove.

Quais as propostas dos diferentes setores que discutem a questão?

Não há unanimidade. Há quem ache que é possível um ER plural, já alguns católicos reconhecem a impossibilidade de qualquer ensino religioso que não seja confessional. Há os que defendem um ER que fale da história das religiões. Ora, quem pode fazer isso? Quantas infinitas formas de significar o mundo subjetivamente existem? Penso que a filosofia sim deveria discutir as diferentes expressões de pensamento, tanto idealistas como materialistas, e incentivar a crítica intelectual dos estudantes que devem submeter tudo ao seu próprio pensamento duvidoso e interrogador do mundo. Há quem defenda que as religiões como candomblé e umbanda devem disputar hegemonia. Imagina se isso seria possível? Candomblé se aprende em terreiro e não na escola, assim como catolicismo se aprende na Igreja e protestantismo nas diferentes assembleias.

As religiões devam ser impedidas de circular nas escolas? Não, porque não somos um Estado ateu. Somos um Estado laico e somente a garantia total da laicidade pode garantir que as diferentes expressões religiosas circulem com seus símbolos e tensões nas escolas. Lidar com essas diferenças e tensões é mais um entre os tantos desafios dos professores e professoras. Há quem acredite que o ER possa ser um espaço para se ensinar Direitos Humanos. Penso que a função principal de qualquer disciplina é essa. Pensar que a disciplina de ER é o espaço dos Direitos Humanos é esvaziar as disciplinas de sua principal função. Então não há disfarce. Defendo uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que retire da Constituição a obrigatoriedade do ER das escolas públicas.

E isso resolveria essa intolerância religiosa nas escolas?

Não resolveria. O ER contribui muito para o obscurantismo, legitima o racismo e a discriminação religiosa. É claro que existem exceções, professores que realizam uma aula plural. Mas é com a regra que humilha diariamente principalmente as crianças de candomblé que estou preocupada. É com a confusão que se faz entre a fé privada e individual, com o espaço de educação pública e coletiva, que estou preocupada. O professor de química, ou qualquer outro, se for obscurantista vai discriminar. O de biologia, por exemplo, vai ensinar o criacionismo e mandar queimar Darwin. O de literatura se recusa a usar mitos e contos africanos, o que acaba gerando ainda mais problemas para a implementação da Lei 10639.

Então eu acho que é defender a PEC, retirar o ER das escolas públicas e trabalhar muito na sociedade como um todo e na formação de professores, em particular, para a construção de uma educação pública de qualidade, multicultural crítica e laica. Ou seja, uma educação para os Direitos Humanos.

Por mais que se tenha questionado como um pastor reacionário, racista e homofóbico como o Feliciano tenha chegado à presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal e permaneça nela, não se questionou o papel da educação nesse processo. Feliciano só chegou onde está e não caiu porque existe uma educação pública conservadora com a pauta homofóbica, racista e obscurantista do Vaticano nas salas de aulas, nos corredores, nos livros, nos pátios de nossas escolas. E, infelizmente, muitos Felicianos estão por vir. O maior desafio atual da educação pública é impedir isso.

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